sábado, 23 de fevereiro de 2008

Jornada do Guarda-Amor



Enamorado não era homem de posses. Não tinha carro, não tinha mala. Mal tinha bolso da calça.

Quando os homenzinhos feios do destino resolveram afastá-lo do seu grande amor, ele não tinha espaço pra levar e guardar alguma recordação dela.

A sua amada quis entregar-lhe um pacote, mas o enamorado não tinha como carregar na longa viagem.

A sua amada ofereceu uma foto sua, mas o enamorado não tinha livro pra por dentro e por isso podia amassar o presente.

A sua amada ainda tentou um anel, uma presilha, um brinco também. Mas ele explicou:

- Amor, espaço não tem. Tenho que ir sem.

Então lembraram das coisas que se sente. Um abraço, um beijo, um cheiro, um som, uma recordação.

Mas o enamorado não se deu por satisfeito, pelo contrário, indignou-se:

- Um abraço some da pele e o carimbo do braço também. Um beijo não deixa com ele a boca ou uma fatia que seja. Um cheiro se embaraça com outros cheiros que cruzar: seja comida, seja futum, seja de chuva, seja de pum. O som é quase igual ao cheiro, tirando que não tem nem cheiro. E a recordação é coisa que é mais da mente que da gente. A mente vai mentindo tudo conforme lhe atente.

Já choravam de saudade, uma saudade fatalista, aquela que não deixa marcas nem restos do outro impressos em si. Foi então que o enamorado correu os olhos no corpo da sua amada.

Era uma pele branca, branquinha, que parecia oceano de leite quente açucarado. Parecia lençol limpo com amaciante, parecia livro novo na estante. Um corpo áureo, igual dia branco. Sua intuição dizia que o segredo estava naquele corpo pleno. Era ali que devia encontrar um universo infinito todinho espremido numa célula.

Célula? Isso! Levaria uma... não, é coisa complicada deveras. E perigoso. Um olho? Mas deixaria a amada caolha? E ele poria onde se ele próprio já estava cheio com seus dois olhos? Nariz também. Orelhas, cabelos, unhas, boca, dentes, língua, braços, pernas, umbigo, coxas, joelhos, canelas, calcanhares, pés, unhas, ossos, músculos, veias, órgãos, líquidos, sim. Cada um, tanto ele como a amada, tinham tudo certinho, na medida exata pra cada porção individual.

Foi então que o enamorado reparou naquele corpo que parecia um dia branco. Sim. Um dia de temperatura leve e ensolarada. E viu que estava diante dum milagre. Pois se o corpo dela era mesmo um dia branco, se era manhã de primavera iluminada, como podia haver tantas estrelas naquele firmamento alvo? Como podia haver tantas estrelas cintilantes na brancura daquela alvorada límpida? Ah!!! Eram pintinhas. Pintinhas espalhadas e até luxuosas. Um luxo supérfluo. Um excesso onde não faria falta uma a mais ou uma a menos.

E no corpo do enamorado tinha espaço de sobra pra uma pintinha a mais. Com muito cuidado, como quem tenta pegar uma formiga na mão, ele veio catando a pintinha da amada. Uma perto do quadril. Era um filhotinho de pinta. Colheu-o assim com a mão e pousou sobre seu ventre moreno.

Pronto. O enamorado pôde seguir sua jornada, carregando sua amada quase toda. Quase toda sim, pois quem garante se é o corpo que tem uma pinta ou é a pinta que tem um corpo?

E agora, enquanto não chega o reencontro tão aguardado, ele mata a saudade dela em si, pois no mapa do seu corpo, está guardado um trecho do céu da sua amada.